O transplante de coração realizado no apresentador Fausto Silva no último domingo – em tempo abaixo da média de espera – reacendeu o debate acerca da transparência da fila de transplantes de órgãos no país e a priorização de pacientes. Uma enxurrada de questionamentos surgiu na Internet, especialmente nas redes sociais da família de Faustão, fazendo ilações sobre o poder aquisitivo do comunicador e a possibilidade de ele ter, de alguma maneira, furado a fila.
As regras para a fila de transplante no país, no entanto, são claras, seguem requisitos técnicos e estão consolidadas, garante Mérces da Silva Nunes, advogada e especialista em Direito Médico e Bioética pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
“São levados em conta critérios como o tempo de espera, a compatibilidade de peso e altura e genética entre receptor e doador, o tipo sanguíneo e a gravidade da doença cardíaca ou estado crítico do paciente”, pontua a advogada. Ela lembra ainda que um paciente que está na UTI tem prioridade sobre o paciente que está na enfermaria e este, por sua vez, terá prioridade sobre o paciente que está em casa.
O fato de um paciente estar na fila de transplantes por meio de um hospital particular não o coloca em posição de privilégio em relação aos demais, já que não há como pagar por este procedimento. Pagar por ele, inclusive, ou por um lugar melhor na fila, é crime, segundo a Lei 9.434/97, que rege o sistema de transplantes de órgãos e tecidos no Brasil, com pena de reclusão prevista entre três e oito anos e multa.
O último escândalo sobre venda de lugar na fila de transplantes no Brasil foi há 15 anos, quando a Operação Fura-Fila, da Polícia Federal, desmontou um esquema no Estado do Rio de Janeiro, denunciado em 2008. Na ocasião, foi preso um médico integrante da equipe de transplantes hepáticos do Hospital do Fundão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, acusado de negociar um lugar na fila de transplante de fígado por até R$ 250 mil.
De acordo com o Ministério da Saúde, Faustão foi priorizado na fila de espera em razão de seu estado, que era considerado grave. O apresentador estava hospitalizado desde o dia 5 de agosto e entrou na fila de transplantes por um coração no dia 20. A espera total, entre a internação e o transplante, foi de 22 dias, abaixo da média. Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), a espera por um transplante de coração pode levar de 1 a 3 meses no Estado de São Paulo, mas não é raro que o prazo seja menor que 30 dias – como no caso do Faustão – levando em conta a gravidade do paciente.
Para entrar na lista, que é única no país e hoje conta com mais de 65 mil pessoas à espera de um órgão, o paciente deve ser elegível para transplante, sendo essa a única alternativa terapêutica recomendada. O médico assistente deve cadastrar o paciente na Lista Única de Transplantes, que é administrada pelo Sistema Nacional de Transplantes, do Ministério da Saúde. A lista é pública, está disponível on-line, no site snt.saude.gov.br. A consulta é por órgão e requer dados como o número do Registro Geral da Central de Transplantes (que pode ser obtido com a equipe médica ou na própria Central de Transplantes), o dia de nascimento do receptor e o seu CPF.
O Brasil é o quarto país que mais realiza transplantes de órgãos no mundo. Há pessoas esperando por um coração, rim, fígado, pâncreas, rim/pâncreas, córnea e pulmão. De acordo com o Sistema Nacional de Transplantes, o mais procurado é o de rim, com 36.954 pessoas na fila. Para um coração, são 386 indivíduos na espera.
A Lei 9.434 estabelece ainda que os transplantes podem ser realizados por estabelecimentos públicos ou privados, e por equipes médico-cirúrgicas de remoção e transplante previamente autorizadas pelo órgão de gestão nacional do SUS. “Antes da realização de qualquer transplante ou enxerto de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, o doador deverá ser submetido aos testes de triagem, para diagnóstico de infecção e infestação, exigidos pelo Ministério da Saúde”, explica Mérces.
Doação
Segundo a especialista, a Lei 9434 determina que, após a morte do doador, a retirada de tecidos, partes e órgãos do corpo humano destinado a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes transplantadoras. “A legislação dispõe que a retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes no ato de verificação da morte”.
Desde 1992, hospitais públicos ou privados são obrigados a notificar todos os casos de morte encefálica, para facilitar a identificação de potenciais doadores. No entanto, se não houver autorização da doação pela família, os médicos não podem realizar o procedimento. Funciona assim desde 2001, quando a Lei 10.211 entrou em vigor, modificando a Lei 9.434, que previa o consentimento presumido, sem consulta à família.
Há, em tramitação, nove projetos de lei que propõem trazer de volta o consentimento presumido, isto é, qualquer pessoa que tenha sofrido morte encefálica se torne potencial doador, automaticamente, a não ser que tenha registrado em vida posicionamento contrário. Outros 13 projetos de lei propõem implantar um modelo de doação conhecido como consentimento informado, em que os órgãos só podem ser retirados de pessoas que se declararam doadores em vida.
Fonte:
Mérces da Silva Nunes, advogada, sócia titular do escritório Silva Nunes Advogados; mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); especialista em Direito Médico e Bioética pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; foi membro da Comissão de Direito Médico da OAB/SP.
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